Almeida Henriques

segunda-feira, 13 de setembro de 2010

Acidente de Alcafache, 25 anos depois

No passado sábado estive em Alcafache numa singela homenagem às vítimas do acidente ferroviário de Alcafache, ocorrido há 25 anos.
Por iniciativa de um grupo de Pessoas envolvidas nesta horrível tragédia, tive ocasião de, 25 anos depois, viver de perto este infeliz acidente que ceifou a vida a dezenas de Pessoas.
Dois aspectos positivos, tantos anos depois, o espírito de solidariedade e ajuda está vivo, foi patente nesta singela homenagem, os erros que estiveram na base do acidente foram corrigidos pela CP, nas obras da linha, na sua modernização, no sistema de monitorização dos comboios e na comunicação.
Deixo aqui o relato de um sobrevivente, fala por si, ... comovedor!
Foi uma tarde de um triste fim, em que o terror, aos meus… … sonhos meteu um fim!
Estávamos a 11 de Setembro de 1985 pelas 18h45, o sol de um fim de tarde amena, convidava-nos a apreciar a paisagem linda do nosso interior, os olhos, esses perdiam-se no horizonte, na mente a esperança que me levava a acreditar que o futuro, embora ainda longínquo seria melhor, apesar de ser longe dos meus que tanto amava, a viagem começara há pouco e já o coração apertava de saudade. De repente como vindo do nada, tudo estremeceu e um enorme estrondo aconteceu, ninguém ficou sobre o seu pé, rolávamos de encontro a tudo era o fim do mundo, entre choros e gritos de socorro, pessoas ficaram inertes desmaiadas no chão, procurei a saída, o caos era enorme, começara a luta pela sobrevivência. Mas… que nos está a acontecer, meu deus?
Jovem de apenas 25 anos de idade, ágil e de boa postura física, rapidamente saí do comboio, e foi aí que me dei conta do cenário em que estava inserido.
As mazelas da queda e as dores do embate, rapidamente desapareceram perante os gritos e apelos de socorro de quem ainda dentro do comboio estava, meu deus disse, voltei a entrar na carruagem, fui de encontro, ao que me haviam outrora ensinado, ajudar os outros, aliás como sempre o fora (e ainda hoje o sou) prestável, encontrei um primeiro corpo inanimado e trouxe-o para fora, era um homem, voltei a entrar rapidamente, desta feita encontrei uma menina, deveria ter 10 ou 11 anitos, peguei nela e trouxe-a igualmente para fora do comboio, era uma luta contra o tempo e pela sobrevivência, voltei a entrar, encontrei uma outra menina inanimada, peguei nela, deveria ter 6 ou 7 anos, e quando me aproximava da porta, deu-se uma enorme explosão e tudo começou a arder, deitei-me no chão, e com o meu corpo cobria o da criança, aguentei alguns segundos, foi quando me apercebi que estava a arder, as chamas enlaçam o meu corpo, queriam-me devorar, lembro-me de ter pensado, se não saio daqui morro!
MEU CORPO ARDIA, e apesar disso fui obrigado a fazer grande ginástica para poder sair alcançando a primeira janela junto de mim, deitei-me fora, sim é o termo, deitei-me fora daquele inferno pela janela e nem tempo tive de ver onde iria cair, só queria sair dali…
Meu corpo, ardendo, caía numa ravina do lado nascente e onde não estava quase ninguém, apesar da queda enorme, e da qual acabara de fracturar a perna direita e espetado um ferro na perna esquerda, era uma luta eu queria sobreviver, eu não podia morrer ali, rolei-me no chão para tentar apagar as chamas que me consumiam, apareceram 2 ou 3 senhoras tentando ajudar-me, gente que trabalhava nos campos em redor, o medo era muito, nem sabia onde estava perdia a noção do tempo do espaço e da vida que me fugia lentamente.
Agonizando no chão, sem quase poder respirar, aflito por não ter mais forças, tudo ardia, tanto grito de terror se ouvia, rapidamente certamente (mas naquele momento parecia uma eternidade) chegavam os bombeiros para nos prestar socorro, vieram buscar-me e levaram-me para o hospital de Viseu, lembro-me de quando entrei pedir ao médico (por favor não me deixe morrer, porque eu sou muito novo), mais tarde acordei com o corpo todo coberto de ligaduras e disse para mim, ainda estou vivo!
Era de dia, ouvia barulho, meus olhos estavam vedados por ligaduras, ouvi a voz de alguém que perguntava aos médicos, quais era os acidentados que inspiravam mais cuidados, era o nosso presidente da República, General Ramalho Eanes que se havia deslocado pessoalmente.
Momentos depois, fizeram-me novos curativos e disseram-me que seria transferido para Lisboa.
Não é fácil passar para o papel as dores e a revolta por que passei, desses momentos difíceis desde a hora do acidente.
Chegado ao heliporto do hospital de Santa Maria, lembro-me de rapidamente ser levado com batedores da polícia à frente de ambulância para o hospital de São José, onde aí começara um outro calvário, perdi o conto das horas, dos dias, das semanas e dos meses que lá estive, ainda hoje guardo com carinho no meu coração todos os profissionais da secção de queimados, o Dtr. Videira e Castro jovem cirurgião, o enfermeiro Letras, a Maria, a Maria do Carmo e todos o outros que a memória me atraiçoou não guardando seus nomes, mas todos, mesmo todos me trataram com muito carinho e será algo que nunca mais esqueço… Depois deste longo período no hospital de São José, tive alta da unidade de queimados, havia emagrecido 30 kg, consumido 56 litros de soro e 7 litros de sangue, começa uma nova etapa era a da reconstrução onde foram feitas 31 operações plásticas, no final de tudo isto, apareceram os problemas de ordem social, sem trabalho, sem emprego para enfrentar de novo a vida…
… E com mazelas que nada nem ninguém poderão mais apagar nem falo dos sonhos porque esses nem têm preço, a CP deu-me uma indemnização de 4 mil contos e mandaram-me embora!
25 Anos se volveram, dizem que é do passado, mas ele, o passado não passou e continua presente!
Sem qualquer tipo de acompanhamento pós-traumático, por gente especializada nestes assuntos, os sobreviventes, fomos deixados ao deus dará, muitas são as vezes que ao longo destas duas décadas e meia, no recanto dos meus pensamentos, os meus olhos se encheram de lágrimas, lágrimas que mais não fazem, que recordar o dia mais trágico de toda a minha e que servem apenas e igualmente como para me lavar a tristeza e a alma…
Hoje na angústia dos meus pesadelos, retenho a honra de ter salvo duas vidas daquele inferno, agradeço de me terem salvo a minha igualmente, mas o que eu nunca esquecerei, é o corpo inanimado de uma criança, que por medo, tive de abandonar…
Alcafache, passou a ser, (certamente para o resto da minha vida) o meu alcatraz!•E que… Deus me perdoe!
Carlos Ramos *
Sobrevivente do acidente. Relato lido nas Comemorações dos 25 anos daquela tragédia.

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